Contribuir para superação do racismo, do preconceito e da discriminação é umas das principais bandeiras da Psicologia enquanto ciência e profissão. A Resolução 018/2002 do CFP estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação ao preconceito e à discriminação racial e determina em seu Art. 1º que “Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão contribuindo com o seu conhecimento para uma reflexão sobre o preconceito e para a eliminação do racismo.”.
Para dar visibilidade ao Dia Nacional da Consciência Negra, durante o mês de novembro o CRP-23 apresenta uma minissérie de entrevistas com psicólogas(os) negras(os) pautando a relação e o compromisso da psicologia com as questões raciais.
Hoje somamos ao mês da Consciência Negra outra data importante: o Dia da Não Violência Contra as Mulheres, celebrado internacionalmente em 25 de novembro. A nossa segunda entrevistada, a psicóloga Izabella Ferreira, atua no Serviço de Atendimento Especializado às Pessoas em Situação de Violência Sexual (SAVIS-HMDR) em Palmas-TO e, dentre outros assuntos, fala um pouco sobre as violências que ameaçam as vidas das mulheres fazendo recorte para as questões de raça. Izabella também atua em consultório particular, é especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, mestra em Ciências da Saúde e militante do Coletivo de Mulheres Negras Ajunta Preta. Conheça:
CRP23 – Sabemos que mulheres negras compõem o grupo mais vulnerável em eventos de assédio e de violência sexual no Brasil. Considerando sua experiência de atuação no SAVIS, você acha importante observar o recorte racial das vítimas? Por quê?
IZABELLA – Sim, acho importante e necessário. Sabemos que as mulheres negras são as mais atingidas por violência sexual e que este fato está fortemente ligado ao racismo estrutural arraigado em nossa sociedade. As mulheres negras são representadas de maneira hiperssexualizada em nossa sociedade como resultado dos estigmas raciais arraigados. Isso implica dizer que, em conseqüência dessas representações racistas, as mulheres negras são vistas como objetos sexuais, supostamente mais acessíveis e disponíveis sexualmente. Esta discriminação racial agrava a realidade dessas mulheres, tornando-as mais vulneráveis a privações e violações. Além disso, estas mulheres também têm menos acesso a serviços de saúde, educação, trabalho, moradia e segurança (pra citar alguns), o que engendra um quadro crítico de vulnerabilidade. É necessário fazer essa leitura dos determinantes sociais da saúde para não incorrer em atuações profissionais que banalizem ou deslegitimem a gravidade do racismo na vida e saúde das pessoas. Além disso, enquanto profissionais, urge que este dado (recorte racial) seja sempre enfatizado, uma vez que contribui para a implementação das políticas públicas para esta população. É importante observar que as mulheres negras lidam diariamente com opressões de gênero, de raça e de classe, um misto de opressões que trazem sofrimento e as torna mais vulneráveis a várias injustiças sociais.
CRP-23 – Quanto ao atendimento psicológico, você acha que psicólogas(os) negras(os) estão mais aptas(os) a atenderem as demandas da população negra no âmbito da saúde mental? Por quê?
IZABELLA – Esta é uma questão delicada. Para acolher uma demanda psicológica/ emocional, precisamos minimamente conseguir ser empáticos com esta demanda que é trazida. É possível ser empático (a) com uma vivência de racismo mesmo nunca ter sofrido com o mesmo? É possível ouvir um relato de racismo e não deslegitimá-lo categorizando como “mania de perseguição”, “paranoia” ou como “exagero”? Sim, é possível que psicólogo (a)s não negro(a)s consigam acolher devidamente as demandas da população negra desde que estejam munidos de fundamentação teórico-metodológica sobre os impactos do racismo na saúde mental das pessoas negras, por exemplo. Porém, este tema não tem sido debatido ou tem sido muito precariamente debatido na formação dos psicólogos, o que torna o aparato teórico desses profissionais muito precário. Sem ter nenhuma dimensão dos impactos do racismo na subjetividade das pessoas, bem como sem entender a amplitude do racismo enquanto gerador de desigualdades, sofrimento e opressões, a escuta e acolhimento podem ficar prejudicadas. Muitas pessoas negras procuram psicólogo (a)s negro(a)s para serem atendidas por eles/elas pelo atributo da identificação. Justificam que se sentem mais representados e imaginam que, por também serem negros, estes profissionais têm mais chances de entender e acolher os relatos de racismo, pois provavelmente também já sofreram racismo em suas vidas. Nessa seara, poderia ser questionada a eficiência da atuação de um/a psicólogo/a que atende idosos, mas ainda não viveu essa fase da vida. No entanto, as fases do desenvolvimento humano (incluindo a velhice) são amplamente estudadas e debatidas desde a formação do/a psicólogo/a, por exemplo. E isso difere muito quando pensamos nas questões raciais e no quanto são estudadas desde nossas formações profissionais. Já ouvi vários relatos de pessoas que, ao relatar, com muito sofrimento, sobre episódios de racismo, ouviram de seus psicólogo (a)s ponderações também racistas ou que banalizavam o racismo sofrido. Isso gera ainda mais sofrimento psíquico a essas pessoas que sentem o racismo sendo chancelado por um saber profissional supostamente emancipador. Eu, enquanto psicóloga negra e antirracista, consigo ouvir um relato de uma mulher negra que se queixa de solidão amorosa e faz associação com o racismo por exemplo, e entender que o que está sendo trazido tem de fato contribuição com uma questão estrutural racista onde as mulheres negras em sua maioria têm sido preteridas nas escolhas amorosas (sobretudo no que tange a relacionamentos estáveis) e até relegadas a um celibato involuntário. O risco de não entender o que significa a vivência da solidão da mulher negra, por exemplo, e anular a contribuição do racismo em tal queixa é grande e pode acentuar o sofrimento daquela que vive tal situação. Por isso, é fundamental que os/as psicólogos/as entendam o quanto o racismo interfere na vida e saúde da população negra, o quanto gera e/ou acentua sofrimentos psíquicos a fim de adotarem práticas antirracistas e coerentes com o próprio aparato ético da Psicologia.
CRP23 – Qual o propósito do Ajunta Preta e como o coletivo funciona?
IZABELLA – O coletivo feminista de mulheres negras, Ajunta Preta, é uma organização política, sem fins lucrativos e auto organizada do Estado do Tocantins. Tem como objetivos: divulgar e ampliar o feminismo negro no Tocantins; acolher mulheres negras e empoderá-las em sua condição étnico-racial; garantir a divulgação de estratégias de autocuidado e amorosidade; partilhar espaços de luta negra e feminista; promover a valorização da diversidade, de vivências, de formas de fala e expressões de nossas dororidades; ampliar o empoderamento de mulheres negras e o processo de construção identitária, com unidade e respeito a nossa ancestralidade. Temos organizado e mobilizado mulheres negras informalmente através de ações na comunidade que privilegiem as pautas das mulheres negras. Temos realizado ações educativas como palestras, rodas de conversa e cine debates ao longo do ano, principalmente em datas emblemáticas para o movimento negro como, dia da consciência negra, dia da mulher negra latino-caribenha (conhecido como julho das pretas), dia da falsa abolição. Outra atividade que realizamos é o grupo de estudos, onde mensalmente, nos reunimos para discutir alguma obra que verse sobre o feminismo negro, como estratégia de nos embasarmos e fundamentarmos nossas discussões e práticas. Esse grupo de estudos é aberto ao público em geral. O coletivo é aberto e podem participar mulheres negras que queiram se engajar na luta pelas mulheres negras.
CRP23 – Como você observa a influência da militância para a saúde mental das pessoas negras engajadas em movimentos sociais de combate ao racismo?
IZABELLA – Observo dois vieses. O primeiro é que a militância possibilita um direcionamento das nossas insatisfações e incômodos com a conjuntura injusta e racista na qual vivemos. A partir (e através) dela conseguimos nomear nossos incômodos e sofrimentos e fazer algo mais a respeito, numa perspectiva coletiva. Conseguimos finalmente perceber que há muito a ser feito e que somos muitos dispostos e engajados nesse processo de luta e transformação social. Percebemos que não estamos sozinhos/as e isso traz um sentimento de pertença e de solidariedade reconfortante. A militância pode muito bem figurar como referência de apoio social para as pessoas que nela estão engajadas, o que favorece e muito em todo o processo de enfrentamento das dificuldades impostas cotidianamente pelo racismo e demais opressões classistas e patriarcalistas. Porém observo também o outro viés que se relaciona ao fato de estar na linha de frente desses enfrentamentos. Existe uma cobrança que é própria do processo de desalienação, ou seja, a partir do momento em que lançamos mão da omissão e nos implicamos como agentes de mudança dessa tessitura opressiva e injusta, não conseguimos mais não nos incomodar e indignar com cada atitude/ acontecimento que vivemos na sociedade. Isso pode trazer um quadro de grande sofrimento e de exaustão por que muitos problemas exigem soluções macrossistêmicas e graduais que muitas vezes fogem de nossa governabilidade. Além disso, nem sempre as relações e interlocuções com os vários movimentos sociais são agradáveis e respeitosas. Também somos alvo de ataques de pessoas e do próprio governo onde somos retratados como baderneiros ou irresponsáveis. Por estes e outros motivos, sempre enfatizo a importância do autocuidado sobretudo (mas não somente) quando estamos engajados na militância. Mas entendo a militância, em si, como uma prática libertadora que contribui e muito para o desaprisionamento de mentes e de busca por justiça.
CRP23 – Você acha que no Tocantins os profissionais da psicologia estão comprometidos com uma atuação antirracista? Comente.
IZABELLA – Eu penso que tanto nós, psicólogas/os do Tocantins, quanto os demais psis do país, temos ainda muito a avançar no que tange ao comprometimento da Psicologia com a luta e atuação antirracistas. É gritante o silêncio da Psicologia frente ao impacto do racismo na população negra. Para muitos profissionais ainda é difícil admitir a existência do próprio racismo, o que seria um primeiro passo para uma visão de mundo coerente com a história escravagista de nosso país e com as consequências dessa história nos dias hoje. O Conselho Federal de Psicologia lançou em 2002 uma resolução (Res. Nº 018/2002) que reconhece o racismo como fator de sofrimento psíquico e estabelece como os/as psicólogos/as devem atuar frente a essas demandas. Também existe uma publicação do CREPOP que dá referências técnicas da atuação dos/das psis no tocante às relações raciais. Precisamos nos apropriar desses e outros referenciais para embasarmos nossas práticas e não incorrermos em faltas éticas de propagação de discriminação racial.
CRP23 – De que forma você acha que a psicologia pode contribuir para a transformação da realidade da população negra?
IZABELLA – Entendemos que o racismo tem sustentado uma estrutura de poder e dominação onde a população negra tem, ao longo da história, sido privada, sistematicamente, de igualdade social, financeira, política etc. Assim, esta população fica mais vulnerável a várias injustiças sociais. Cabe à Psicologia, enquanto ciência e profissão, se engajar no enfrentamento do racismo na sociedade. A psicologia pode contribuir com seu saber no desvelamento dos sofrimentos causados pelo racismo, na promoção da saúde da população negra e na defesa de uma sociedade mais justa e igualitária. Pode contribuir na construção e divulgação de conhecimentos sobre o impacto do racismo na subjetividade (e processos de subjetivação) da população negra e somar esforços à luta antirracista.